Contestação

Porque é que devemos mudar o ensino?

   Podemos, sem grandes esforços de raciocínio, concluir que o principal objectivo do ensino será ensinar. Ainda que isto não se trate de uma conclusão propriamente inovadora, podemos, ainda assim, levá-la um pouco mais longe ao admitirmos que, de uma maneira geral, se pretende que o ensino, ao ensinar, transmita especificamente conhecimentos racionais, que é o mesmo que dizer aqueles de cariz mais exequível, tendencialmente objectivos e impessoais e mais facilmente transmissíveis também (em contraste com os que poderemos designar psico-emocionais e sensoriais, que, embora tendo tanto ou mais impacto na vida de cada um do que os racionais, acabam por ter uma aplicabilidade mais pessoal e subjectiva, o que lhes confere uma menor transmissibilidade).

   Ora, se é este o propósito do ensino, e isto não será propriamente controverso, não é necessária uma observação atenta para concluirmos que este propósito é frequentemente, quase constantemente, até, falhado. Há uma focalização tal no cumprimento de metas, requisitos e outras imposições mais ou menos artificiais e mais ou menos burocráticas (resultantes, em parte, do que já é o costume e a tradição desde há muito tempo) que, pura e simplesmente, só se pode dizer que o ensino está desvirtuado.

   É certo que, tendo observado isto, poderíamos todos ficar calados, comentando eventualmente com aqueles mais próximos de nós (e com quem temos o hábito de discutir um bocadinho de Filosofia aqui e ali) o quão mal isto vai, mas, de resto, não fazer nada para o mudar. Afinal, até que é pouco tempo, ou relativamente pouco tempo, e o esforço de mudar as coisas é tanto… Mas, convenhamos, será que alguém gosta mesmo da escola?

   Se responderem que sim, das três, uma: ou estarão a mentir (eventualmente para… dar graxa… a alguém, o que tem sido uma estratégia de sobrevivência e sucesso para muitos alunos), ou estarão intensamente manipulados (o que, à parte eventuais paranóias relativamente à sociedade e ao status quo e respectivas intenções malignas, não é assim tão provável), ou serão muito provavelmente o melhor exemplar do arquétipo do totó que alguma vez existiu (o que, vindo de quem facilmente poderia ser vilipendiado através desse epíteto, não é insulto, mas sim forma de dizer que também não é provável que assim seja). Então, o que podemos resumir deste pequeno estratagema retórico? Que ninguém, e repita-se, ninguém, gosta do ensino. Mas não tem de ser assim.

   Aprender é, afinal, uma coisa que, no fundo, todos os seres humanos apreciam (com eventuais excepções, há que o admitir, mas não nos prendamos com pormenores criados especificamente para desconversar…). O que ninguém aprecia é todo o conjunto de tarefas diversas, como sejam os testes, os trabalhos de casa, as apresentações e outras imposições e indesejabilidades anexas, que vêm, no actual sistema de ensino, agregadas a esse formidável acto de aprender. Então, a solução para que a escola se torne muito mais suportável seria simples: eliminar essas indesejabilidades, essas partes desagradáveis, que afastam tanta gente. Em última análise, é isso que o paradigma dos Mini-Ciclos de Leccionamento se propõe fazer.

   É certo que não é este o único motivo do desapreço pela escola. Também não podemos excluir razões sócio-económicas diversas, que reduzem substancialmente as perspectivas de futuro dos potenciais estudantes (levando-os a concluir, como hoje em dia se passa, que o estudo, por si só, não lhes poderá garantir emprego) e/ou que podem levar a que surjam problemas económicos (que, para além de dificultarem a eventual aquisição dos materiais e instrumentos necessários, levam a que os alunos tenham de sair da escola para sustentar a família); no entanto, não tendo este factor origem directa nas dinâmicas internas do sistema de ensino, não será propriamente lícito esperar que qualquer organização de um sistema de ensino, por si só, o consiga resolver. No entanto, como o ensino acaba por ter sempre um certo impacto em toda a sociedade, também não podemos deixar de parte a possibilidade de, reformulando o ensino, podermos vir a contribuir para que essas situações se resolvam, mesmo que isto seja uma esperança mais utópica do que racionalmente justificada…

   Nesse sentido, então, de melhorar o actual sistema de ensino (embora “revolucionar para melhor” seja um termo tecnicamente mais apropriado para o que este projecto propõe…), convirá, dentro do género, apontar um pouco mais aprofundadamente as críticas que se lhe poderiam fazer.

   Referiu-se já que há toda uma gama de imposições desagradáveis diversas (testes, exames, apresentações orais…) que, à falta de melhor termo, azucrinam impiedosamente os alunos; muitos diriam que se trata de um mal necessário, que vem agregado à inevitável tarefa de avaliar os alunos. Mas será essa tarefa assim tão inevitável?

   A questão é que, se o principal propósito do ensino é, de facto, ensinar (como se começou por dizer), de pouco ou nada serve, nesse estrito sentido de ensinar, atribuir ao aluno uma nota numa escala fechada e discreta (no sentido matemático do termo: com valores não contínuos). Diriam alguns que se torna necessário aferir se o aluno adquiriu, de facto, os conhecimentos leccionados, mas, se a matéria vem aglomerada em “pacotes” de um ano ou um semestre, e se a nota de passagem fica logo acima de metade da escala, bastará, em teoria, adquirir pouco mais de metade dos conhecimentos leccionados e está-se passado… deixando para trás os conhecimentos não adquiridos, que poderão nunca mais vir a sê-lo. Então, de que serviu avaliar neste caso? A resposta é: de nada. Mas, mesmo não pondo em questão a necessidade de avaliar os alunos, se a avaliação tem como objectivo aferir se o aluno adquiriu o conhecimento leccionado, então os instrumentos utilizados estão francamente desajustados.

   É que, precisamente por serem momentos pontuais, há sempre a possibilidade de haver uma conjugação anormal de factores adversos (para citar adaptadamente umas declarações oficiais relativamente à proliferação de uma certa bactéria, aí há uns tempos, que tem continuado a surgir aqui e ali, mas que não interessa nada para o assunto em questão) que levam a que, nesse momento, o aluno não esteja propriamente nas melhores condições para realizar as tarefas exigidas (exemplos disto seriam o stress, questões familiares diversas que possam surgir poucos dias antes do momento de avaliação e outros factos afins); é certo que seria relativamente pouco provável acontecer uma coisa destas em cada momento de avaliação, mas é inegável a existência de eventuais circunstâncias perturbadoras, capazes de impactar negativamente o desempenho do aluno nesses momentos de avaliação, fazendo-o demonstrar que sabe menos do que o que verdadeiramente sabe.

   Por outro lado, também não podemos branquear o facto, assaz recorrente, de nem sempre todas as coisas desempenhadas durante o momento de avaliação o serem exclusivamente com base no conhecimento adquirido pelo aluno: há cabulanços, copianços, consultas sub-reptícias da Internet através do telemóvel mais ou menos camuflado… e também não é de descurar a possibilidade de a matéria, em parte, poder ser apenas decorada, o que acaba por não corresponder exactamente a ter sido adquirida. E isto, juntamente com o facto de o resultado do momento de avaliação também depender do avaliador (quer do modo como como conduz o momento de avaliação, no sentido em que, por exemplo, professores diferentes constroem os testes de formas diferentes, o que leva a que os alunos possam ter desempenhos diferentes, quer do modo como avalia o desempenho do aluno, no sentido em que há professores mais rígidos, com mais tendência para descontar, e outros mais permissivos, com mais tendência para perdoar pequenos erros de distracção e não de desconhecimento), só nos pode levar a concluir uma coisa: os testes, os exames, os instrumentos de avaliação habituais, não reflectem adequadamente o verdadeiro nível de conhecimento dos alunos. Pura e simplesmente, não reflectem. Não há volta a dar. Diriam alguns que, apesar destas imperfeições, o modelo avaliativo actual ainda é o mais funcional, mas somos levados a discordar, afirmando, sem hesitar, que há alternativas melhores. Mas isto será mais assunto para a Inovação e não tanto para esta Contestação.

   Já que contestamos, importará, então, acrescentar um outro aspecto bastante negativo do actual sistema de ensino, que é o da rigidez organizacional excessiva que este apresenta. O agrupamento das disciplinas em cursos (e também dos conhecimentos em disciplinas, mas deixemos isto, mais uma vez, para a Inovação…) acaba por ser muito limitativo, já que o prosseguimento de um certo curso específico tende a impedir o prosseguimento de todos os outros, o que força os alunos a abdicarem de conhecimentos que seriam tão legítimos de adquirir quanto quaisquer outros (é certo que não se necessita intrinsecamente da escola para adquirir conhecimento, mas, se não encarregarmos esta de ser o principal local de transmissão de conhecimentos, mais vale acabarmos logo com todo o ensino… o que, num certo sentido, talvez até não fosse tão mau assim… desde que, claro, se construísse um novo e melhor em seguida…); inversamente, até a essa separação em cursos, o aluno é forçado a adquirir conhecimentos das mais diversas áreas, algumas das quais sem interesse e/ou sem utilidade para esse mesmo aluno (o que só o fará não os aprender e apenas tentar passar, contradizendo a eventual razão por detrás desta genericidade forçada: a de garantir uma cultura geral e uma base de conhecimentos ampla para todos os alunos). Assim, o actual sistema de ensino consegue impedir simultaneamente que os alunos atinjam a especialização que pretendem (ao forçar, inicialmente, a genericidade) e a abrangência que desejam (ao forçar, mais para o fim, a especificidade), o que não deixa de ser um certo contra-senso vagamente hilariante.

 Mas, além disto, convém dizer que a já referida aglomeração da matéria em “pacotes” anuais/semestrais tem, também, um duplo impacto negativo, ao forçar os alunos que mais facilmente pudessem ter adquirido os conhecimentos a se manterem a marcar passo por lhes ser vedada a aquisição de conhecimentos de anos ou semestres posteriores, e ao impedir que os alunos que possam, eventualmente, ter maiores dificuldades em acompanhar o ritmo revisitem a matéria não adquirida, prejudicando, assim, o principal propósito do ensino, que é, e mais uma vez se o repete, ensinar. Adicionalmente, esta organização em anos/semestres leva a que, em caso de retenção, se tenha de revisitar toda a matéria, incluindo aquela que, eventualmente, se poderá ter adquirido na frequência anterior, o que pode levar a que o aluno fique desmotivado, prejudicando, assim (e mais uma vez), a sua aprendizagem; claro, na repetição desses ciclos de leccionamento (esta expressão ainda vai aparecer muito mais, habituem-se!), perde-se um longo período de tempo (à volta de um ano ou à volta de seis meses), tempo esse que poderia ser útil para o aluno ou para a sociedade.

   Falta abordar mais um aspecto, que se prende com a existência de um certo número (talvez até um número bastante grande…) de falhas na organização dos programas lectivos; se, por um lado, há uma grande inconstância, que dificulta bastante que alunos e professores estejam sempre bem cientes e conhecedores daquilo que deveriam ter aprendido e ensinado, respectivamente (é certo que, no que toca aos alunos, é relativamente usual só se implementarem as mudanças no início de cada ciclo – leia-se ciclo, agora, no sentido de 1.º, 2.º e 3.º ciclo e secundário –, o que, em parte, ajuda a reduzir este problema, mas não serão inéditos os casos em que não foi bem assim; além disso, alunos que reprovem no ano da transição terão sempre de se haver com este problema…), também se verifica, em certas disciplinas, uma repetição recorrente das mesmas matérias, nem sempre muito mais aprofundadamente, em anos diferentes, o que gera uma mistura muito negativa de perdas de tempo, enfadamento e confusão. E isto, tudo somado, contribui para uma certa ineficiência do actual sistema de ensino (exacerbada por atrapalhamentos diversos de ordem e génese burocráticas…) e para um certo desinteresse dos alunos, o que, mais uma vez, acaba por contrariar o principal propósito de qualquer sistema de ensino, que é, como já se frisou abundantemente, o de ensinar.

   Tendo, portanto, todas estas coisas em conta, chegaremos à conclusão (que originou, em última análise, todo o paradigma, todo o projecto que aqui é descrito) de que o actual sistema de ensino deixa, apesar da sua aparente longevidade e estabilidade, ainda muitos problemas por resolver. Então, no sentido de tentar corrigir as suas falhas, somos levados a propor um sistema de ensino alternativo, que será descrito (com a maior pormenorização que o facto de, até à data da elaboração deste texto, nunca ter sido posto em prática nos permite…) no ponto seguinte, Inovação.



Mini-Ciclos de Leccionamento – Um Paradigma Alternativo de Ensino
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