6 de fevereiro de 2017

Da Insuperioridade do (In)Superior

   Saudações a todos os leitores. Já lá vai muito tempo, demasiado tempo, desde que nos encontrámos peça última vez, e lamento imenso por isso. Foi o habitual e expectável (mas não por isso menos imperdoável) misto de falta de tempo, tema e inspiração que já me tem, por outras vezes, condenado a longos silêncios como este. Porém, não se prologará mais este, dado que, como o mero facto de aqui estar a escrever o indicia, vos tenho a apresentar uma nova entrada, sobre um dos poucos temas relativamente intocados por mim no que toca ao ensino, em grande medida para não dar azo a (mais?) acusações de criticar a priori o que não conheço. Dificilmente se poderá dizer que tal ocorre agora, pelo que, como o título o indicia, escolhi tomar para tema desta entrada o ensino superior.

   Aqui e ali, em momentos diversos, creio já ter aludido à minha perspectiva de que a clivagem que hoje em dia se pratica e cultiva entre o ensino “inferior” e o superior (já sabem que a questão do inferior é mais irónica que outra coisa, certo?) é, muito à semelhança daquela que surge entre o ensino básico e o secundário, dispensável e, mais do que isso, prejudicial para o cumprimento daquele que me parece ser – como sei que já frisei repetidas vezes – o principal propósito do ensino, que é precisamente o de transmitir conhecimentos. É que, em última análise, cultivar-se, de uma forma (sejamos realistas…) grandemente deliberada, um choque, em termos de rotinas, de maneiras de ser e estar, de formas de encarar a escola e o estudo, e tudo o mais, entre dois níveis de ensino é promover um atrapalhamento e uma descoordenação mental que, mesmo sendo temporários, sempre acabam por prejudicar as aprendizagens dos alunos. Ou, no mínimo dos mínimos, trazer-lhes algum grau de desconforto e/ou sofrimento, o que, por princípio, deve ser evitado. Digo eu… Bom, neste sentido, a conclusão final só poderá ser mesmo a de que o ideal seria acabar-se com essa clivagem, mas, dado que uma boa parte de mim abomina a sucintez e outra aprecia a crítica ao actual sistema de ensino, tenho um duplo motivo para tentar enumerar alguns aspectos positivos e negativos. Mais que não seja, para a entrada não ficar inteiramente falta de substância e significado…

   Aspectos positivos… Bem, sentir-me-ia fortemente tentado a dizer que não existem, mas estaria, talvez, a ser demasiadamente parcial. O ensino superior traz, organizacionalmente, uma certa vantagem comparativamente ao ensino inferior, que é o pormenor de os ciclos de leccionamento serem mais reduzidos, correspondendo, de uma maneira geral, aos aglomerados irregulares de tempo a que, por convenção, tradição e imitação de práticas alheias, se costuma chamar semestres. Isto, juntamente com a menor interdependência das várias disciplinas dos vários bancos das várias cadeiras, permite obter um pouco da flexibilidade contida na ideia dos Mini-Ciclos de Leccionamento… ainda que de uma forma deveras ligeira, tendo em conta que cada um dos pacotes de matéria contém, ainda assim, uma boa dose de conteúdos diferentes (e, acrescentaria eu, nalguns casos, mais ainda do que um ano lectivo no ensino inferior) e que a estruturação temporal de todas as actividades lectivas é, ainda, manifestamente fechada, estática, inflexível (claro, poder-se-ia argumentar que a maior facilidade em faltar às aulas a modos que compensa isso, mas, convenhamos, não é bem a mesma coisa…). Um outro aspecto positivo, pelo menos, para alguns alunos, será a mentalidade mais autonomista que perpassa praticamente todas as práticas pedagógicas, o que, se for de encontro à tendência natural do aluno, pode contribuir para que o seu processo de aprendizagem ocorra mais eficazmente. Ou não, caso o aluno não se dê bem com essa mentalidade. Mas não vamos por aí…

   Mudando completamente de lados, há uma dose um pouco mais substancial de aspectos negativos passíveis de serem apontados ao ensino superior (ou, pelo menos, a minha tendência intrínseca para criticas faz com que mais se me apresentem…), Acima de tudo, e mais flagrantemente, temos o pormenor de se dar continuidade à grande maioria das práticas, sobretudo em termos avaliativos, do ensino inferior, o que, agravado pela maior despersonalização que, em maior ou menos escala, acaba por ser cultivada em todas as instituições, prejudica a transmissão de conhecimento, no sentido me que desmotiva os alunos, descarta (alguns d)aqueles que possam ter aprendido como não o tendo feito e reconhece que (alguns d)os que não aprenderam o fizeram, como bem sabemos (ou, pelo menos, como eu bem creio) que o faz. Claro que isto não é um problema exclusivo do ensino superior, é consequência de todo o actual sistema de ensino, mas… enfim, não deia de ser um aspecto negativo.

   Depois, claro, temos a questão da escala. Posto que, desde início e concepção, o ensino superior não tem qualquer carácter de obrigatoriedade, será mais ou menos compreensível (mais ou menos…) que as entidades tenham a liberdade de prejudicar as aprendizagens dos alunos ao aglomerarem o maior número possível numa sala, de modo a melhor economizar os recursos, dado que, financeiramente falando, não terão, porventura, o mesmo tipo de apoio que o ensino inferior tem; porém, há uma parte de mim que não se pode impedir de pensar que isso é uma marca de uma intencionalidade mais sinistra por parte das instituições de ensino superior em geral: precisamente a mesma que – da minha perspectiva – conduz àquela abjecção começada por P, e a milhentos outros rituais associados à “tradição académica”, que é a de apresentar precisamente a clivagem de que comecei por falar, fazendo os alunos sentir que ali se deparam com uma coisa diferente, (apresentada como sendo) melhor, e que, por isso, já pertencem a uma elitezinha, a um grupinho particular (e acrescentaria que este sentimento de pertença é, também, reforçado pelo sofrimento a que são sujeitos, muito à semelhança, se me permitem o lirismo, dos laços forjados entre irmãos de armas…), que, sendo assim tão particular, acarreta também um conjunto de maneiras de ser, estar e pensar que deverão, dentro do género, ser adoptadas. E isso, juntamente com o pormenor de ser nas estruturas associadas ao ensino superior que ocorre a maior parte da criação ou descoberta de novos conhecimentos, remete-nos para aquele fenómeno desagradável da estagnação paradigmática de Kuhn (bem, a parte da estagnação é mais dedinho meu, a ideia do senhor seria mais um progresso sistemático que ia abrandando, mas, enfim… anda mais ou menos lá perto), além, claro, dos igualmente desagradáveis – e não menos nefastas – manipulação e submissão ao status quo e à sociedade como um todo, que, de uma maneira geral, tende a ser um nadinha prejudicial ao indivíduo em particular e a cada um dos indivíduos em geral…

   E, claro, há um outro aspecto, não inteiramente desligado do da escala, que é o dos numeri clausi. É certo que, se os recursos são limitados e o ensino não é obrigatório, não se poderá, a priori, esperar que se consiga dar resposta a todos quantos queiram ingressar num dado curso (o que só quer dizer que talvez tenhamos de reequacionar as coisas de modo a que essa limitação de recursos não se verifique, ainda que, pessoalmente, não tenha razões para descartar completamente a possibilidade de as vagas limitadas também serem, em parte, deliberadas…); porém, o actual processo de selecção dos alunos do ensino superior também não me parece, de todo, admissível. Além de todos os problemas intrínsecos às avaliações e às notas, internas e externas, dos alunos, bem como do multifacetado choque entre estabelecimentos de ensino (inferior e superior) públicos e privados, temos aquele pequeno grande problema ideológico e filosófico de, em última análise, estarmos a impedir o acesso das pessoas ao conhecimento, o que, mais do que indesejável, é perigoso. Já para não valor dos sonhos destruídos… e do empolamento, nem sempre inteiramente verídico, nem sempre inteiramente devido, de alguns cursos em detrimento de outros, o que, em última análise, quase que equivale a dizer que há conhecimentos mais louváveis que outros – o que é, ou me parece ser, absurdo. Mais a mais, a existência de múltiplas estratégias para entrar, mesmo que por vias menos directas, no curso ambicionado (refiro-me maioritariamente às transferências internas, mas não me parece, de todo, impossível que existam outras, que o meu entendimento humano, intrinsecamente limitado, me não permite discernir) a modos que revela um certo carácter desnecessário do actual processo de candidaturas, já para não dizer mesmo ridículo.

   E talvez ainda pudesse dizer muito mais, mas temo estar a ser sobremaneira enfadonho. Mais do que o normal… Enfim, foi o que se arranjou, embora não possa deixar de pensar que vocês merecem melhor, caros leitores. E espero poder dar-vos essa entrada melhor um dia destes, mas, por agora, terei de ficar por aqui.

   Fiquem bem, contestem sempre e até à próxima entrada…