20 de julho de 2016

O Fantasma da Preparação Para o Futuro

   Mui nobres e gentis senhores leitores, não é com grande satisfação que vos comunico que não será propriamente esta a entrada filosófico-argumentativa que pretendia fazer na sequência das minhas duas entradas da semana passada; é, ainda assim, um comentário, ou uma reflexão, ou uma constatação, que eu, enfim, considero minimamente relevante para aqui figurar.

   Todos nós que somos alunos (e, talvez em menor escala, mesmo aqueles de nos que já não o são) já nos defrontámos, de uma forma ou de outra, com o fenómeno que pretendo aqui abordar, e por isso não são necessárias grandes apresentações. Mas eu, verborreico como sempre, fá-las-ei na mesma.

   É mais do que frequente, durante o normal decorrer dos processos lectivos, haver um qualquer aluno que se queixa, por uma ou outra razão, da dificuldade das aulas em geral, ou de um seu aspecto em particular (não nos interessa, para agora, se com ou sem razão). E então, em consequência disso, o professor ou professora a quem a crítica fosse destinada, ou que acabasse por a escutar, não toma outra atitude senão a de responder, com toda a naturalidade: “Prepara-te, que quando chegares [ao próximo nível de ensino] vai ser pior!” E isto, se para alguma coisa conta a minha experiência pessoal, acontece em praticamente todos os níveis de ensino, o primeiro ciclo em relação ao segundo, o segundo em relação ao terceiro, o terceiro em relação ao secundário, o secundário em relação ao superior (e só não sei se dentro do superior há tais situações, mas isso dever-se-á muito provavelmente ao triplo facto de os alunos se queixarem menos abertamente, de os professores prestarem muito menos atenção a essas queixas e de os testemunhos a que até agora pude ter acesso não provirem, muito provavelmente, de alguém que tenha o mindset mais propício a dar tanto destaque a uma ninharia como esta quanto eu estou a dar agora…). O caso torna-se mais desagradável quando algum colega “bem-intencionado” reforça o aviso e/ou a ameaça por intermédio da narração de um qualquer episódio que tenha ocorrido a uma familiar ou amigo no nível de ensino em causa, mas deixemos isso de lado. Será, pois, este o tal “Fantasma da Preparação Para o Futuro” de que para aqui vim falar, e será precisamente este o objecto central das minhas reflexões.

   Independentemente da reacção natural de cada aluno a afirmações deste tipo, que poderá oscilar entre um nervosismo extremo e uma apatia voluntária (englobando, também, aquela rara – mas, para mim, deveras valiosa – atitude de criticar o sistema de ensino…), importará aferir, ou melhor, debater em que medida é que isto é vantajoso. Claro que constitui um aviso, potencialmente útil, para eventuais dificuldades futuras, mas, por outro lado, também acaba por ser uma justificação bastante conveniente para erros e injustiças. E já sabem já sabem o quanto gosto de erros e injustiças, não sabem? Enfim, há sempre aqueles casos em que uma acumulação excessiva (e decorrente mais de desatenção ou negligência por parte de quem os marca do que da necessidade absoluta de as coisas serem assim) de momentos de avaliação e trabalhos para entrega mais que urgente é, de uma maneria geral, branqueada pela afirmação de que, em fases posteriores do ensino, a acumulação é ainda mais intensa (mas ninguém se lembra nunca de destacar que o estado dos alunos, em termos mentais e sociais, é já diferente…).

   Por outras palavras, é pouco menos que idiótico expor os alunos às torturas e aos tormentos do futuro no presente; mesmo que a intenção seja a de os preparar para essas torturas e para esses tormentos, ou seja, mesmo que a intenção seja boa (e nem vale a pena complicarmos as coisas e dizermos que nem sempre o é…), não deixamos de estar, em essência, a antecipar as torturas e os tormentos do futuro para o presente, e, especificamente, para um presente no qual os alunos poderão não estar (tão) capacitados para os suportar.

   Mas, mais do que isto, este “Fantasma da Preparação Para o Futuro” acaba por traduzir, mais directa que indirectamente, a noção de que o ensino tem como propósito e/ou missão preparar os alunos para o futuro (bem… estava-se mesmo a ver, não se estava?). E isso, para mim, nem sequer está em causa: é indubitavelmente falso. Conforme a Fundamentação Metafísica do Propósito da Escola, o ensino deve ensinar (pois… eu sei…), ou seja, transmitir conhecimentos racionais, e isso não passa, de modo algum, por expor preparatoriamente os alunos aos seus potenciais sofrimentos futuros. Que o ensino, nos níveis mais baixos, transmita conhecimentos que possam servir de base a outros futuros, isso é consequência da própria estruturação do conhecimento (que talvez devesse ser revista, mas pronto…); agora, isso em nada contempla essa preparação para o futuro, que, por sua vez, em nada contribui para a transmissão de conhecimentos, que podemos admitir ser – e que eu considero convictamente ser – o propósito final do ensino. Mas irmos por aqui levar-nos-á a debater o próprio funcionamento do ensino, e isso só me levaria a apresentar uma certa e determinada proposta de sistema de ensino alternativo, que não é, de modo algum, para aqui chamada, e, então, para não nos desviarmos mais ainda do assunto, não vou prolongar esta linha argumentativa.

   Direi, em vez disso, que, se dúvidas houvesse relativamente à indesejabilidade deste “Fantasma da Preparação Para o Futuro”, e da inerente perspectiva de que o ensino tem como propósito preparar os alunos para o futuro, creio que essas dúvidas serão facilmente anuladas se considerarmos duas coisas, que apresentarei de seguida. Por um lado, se encararmos todas as fases do ensino como preparação para a(s) seguinte(s), só poderemos concluir que a penúltima será a preparação para a última, a antepenúltima será a preparação para a preparação para a última, a ante-antepenúltima será a preparação para a preparação para a preparação para a última, e por aí fora, numa matryoshka deveras ridícula de preparações (o que, em última análise, acaba por implicar que esta perspectiva é igualmente ridícula…); por outro lado, se atribuirmos ao ensino o dever de preparar os alunos para o futuro, idealmente, cada instante seria dedicado a essa mesma preparação para o futuro, e podemos facilmente verificar, sem grandes divagações filosóficas e/ou metafísicas, que esse tipo de focalização tende a desvalorizar bastante o presente, o que acaba por nos tornar infelizes e prejudica ligeiramente (só ligeiramente…) esse mesmo futuro para o qual tão ardentemente nos preparámos (o que nos levará a concluir que as consequências desta perspectiva não são tão positivas assim). Portanto, creio que isto demonstra medianamente bem que o “Fantasma da Preparação Para o Futuro” é um problema real que convém, se possível, eliminar.

   E era isto que tinha para dizer. Sei que não será exactamente um pináculo de eficácia argumentativa, ou o supra-sumo da profundidade das reflexões filosóficas, mas não deixa de ser um comentário relativamente útil para destacar mais um errozito, mais um problemazito, deste maravilhoso (pois, pois…) actual sistema de ensino.

   Enfim, se ainda andarem por cá, e ainda tiverem vontade de ler, até à próxima entrada…

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