16 de junho de 2016

Sobre a Elitização do Conhecimento

   Caros leitores, nesta semana que marca o início da época do tormento ignóbil que são os exames nacionais (e contra os quais talvez valesse a pena, dentro do género, tentar lutar… não?), trago-vos uma entrada que, não sendo propriamente nada de muito inovador, constitui, na mesma, o que eu diria ser uma certa mudança de tom e de tema que talvez venha refrescar os ares aqui no blog. Está bem que não saímos das questões do ensino, mas vamos agora fazer uma análise um pouco mais reflectida e menos contestatária, de contornos (semi-)históricos e essência (semi-)filosófica. Espero que isso não vos incomode muito.

   Ora bem, o que é que eu quero dizer com isto da “elitização do conhecimento”, ainda para mais nesta época em que praticamente toda a informação do mundo pode facilmente ser acedida, premindo uns botõezinhos com letras em cima, ou arrastando os dedinhos por um ecrã? É (relativamente) simples: trata-se da tendência (já antiga, como vamos ver, mas ainda bem viva nos dias de hoje) de tornar o conhecimento, o verdadeiro conhecimento (portanto, não propriamente dados, mas a forma de os relacionar e interpretar), algo exclusivo de um grupo mais ou menos restrito de pessoas, grupo esse cuja maneira de ser e estar se consolida e perpetua com esse mesmo monopólio do conhecimento. Isto, no fundo, trata-se de mais uma manifestação da tendência conservativa e auto-perpetuante das sociedades (neste caso em particular, correspondentes aos grupos detentores do conhecimento, embora estes, por usa vez, também se encontrem subjugados aos interesses e intuitos da sociedade mais vasta, mais abrangente, que, naturalmente, engloba esses grupos e os restantes cidadãos…), e, nesse sentido, é algo vagamente expectável, pelo que não devemos ficar demasiado espantados por acontecer. Mas já sabem como sou e como penso: esse mesmo facto não nos pode levar a pura e simplesmente aceitar que as coisas sejam assim.

   Não vale a pena entrarmos nas questões dos segredos de estado, das informações confidenciais e da espionagem, porque, além de, no fundo, se tratar de informações e não de conhecimentos (que, sem filosofias transviadas, terão um carácter “operativo”, ou seja, de raciocínio e/ou noção de como fazer, e não um carácter meramente “indicatório”, de mera constatação de um estado de coisas, como têm as informações), introduz um nível de complexidade adicional, pela vasta gama de factores que os influencia e determina (e também pela sua génese e natureza maioritariamente extra-ensino, o que leva a que fujam quase completamente ao âmbito deste blog). Nesse sentido, a esmagadora maioria dos casos que restam para analisarmos (e descontando as situações de elitização de eventuais conhecimentos metafísicos e/ou transcendentais, que entra já no domínio das sociedades secretas, da religião, da fé – e, eventualmente, da charlatanice…) diz respeito, em maior ou menos escala, ao ensino, e aos vários tipos de estruturas académicas que formam construídas a partir dele ou em torno dele.

   O ensino, ou a transmissão de conhecimentos, remontará muito provavelmente às primeiras comunidades humanas. É mais do que óbvio: as gerações mais antigas, que mais experienciaram do mundo, transmitiam as suas experiências e as suas técnicas de sobrevivência às gerações mais novas, assim garantido que a comunidade continuaria activa – e viva. Neste sentido, mesmo que haja uma acumulação do conhecimento, total ou parcialmente, num grupo mais ou menos pequeno, não fará sentido falar-se de elitização do conhecimento, porque esse grupo estava tudo menos interessado em manter esse conhecimento só para si.

   Isto correu tudo muito bem enquanto as comunidades eram pequenas e a transmissão podia ser mais ou menos directa, mas, à medida que a densidade populacional aumentava e que as tarefas se tornavam cada vez mais específicas, passou a haver problemas: pela natureza simultaneamente gregária e facciosa do ser humano, os indivíduos que se dedicavam a uma tarefa específica acabaram por se juntar, gerando um grupo mais ou menos fechado e mais ou menos estanque, que mantinha em si os segredos do ofício em causa. Logicamente, só entraria nesse grupo aquele que fosse digno de representar a classe dos profissionais em causa, e essa dignidade só se atingia após alguns (bastantes…) anos de aprendizagem e experiência. E isto, com mais umas situaçõezinhas aqui e ali, com mais umas burocracias, umas formalizações e umas leis, originaria aquilo que viriam a ser, pelo menos cá na Europa, as guildas (passou bastante tempo entretanto, é claro; isto foi um processo gradual e não instantâneo…). Se este tipo de organização trazia a grande vantagem de consolidar e (eventualmente) estimular o melhoramento dos conhecimentos, também era francamente elitizado, já que subir na hierarquia da coisa (o que traria consigo aceso a conhecimentos cada vez mais “preciosos”) não era propriamente imediato…

   Só que falar disto assim é calar, entre outras coisas, um aspecto bastante relevante, num período, aliás, em dois períodos históricos bastante interligados, e de grande importância para o desenvolvimento desta sociedade dita ocidentalizada (terá certamente havido outros semelhantes para outras culturas, mas, quer pelo público-alvo de tudo isto, quer pela própria abrangência dos meus conhecimentos – ou falta dela –, vou resumir-me a estes dois aspectos, de modo a não cometer mais erros históricos do que os que já possa ter feito); acho que será mais ou menos óbvio do que é que falo: dos filósofos da Antiguidade Clássica e dos humanistas do Renascimento. Nestes dois períodos, como os leitores provavelmente saberão, houve literalmente dois picos na liberdade de acesso ao conhecimento, havendo, dentro do género, abertura para discutir livremente uma vasta gama de assuntos (um pouco menos, talvez, no caso de Renascimento, mas, ainda assim…). Bem, não obstante toda esta liberdade, também não podemos deixar de pensar que, no fundo, ainda se verificava uma certa elitização do conhecimento, no sentido em que, na maioria dos casos, acabava por ser necessário pertencer a um determinado grupo social e ter um determinado tipo de atitudes e mentalidades para verdadeiramente ter a possibilidade de procurar e adquirir os conhecimentos… sobretudo quanto temos em conta o analfabetismo mais do que frequente nos estratos menos privilegiados da sociedade… mas isto também já é ser maldizente…

   Historicamente falando, falta ainda falar do elefante na loja de porcelana (ou na sala, se formos mais anglo-saxónicos…): a questão da religião. Em maior ou menor escala, consoante a cultura e a sociedade em que se insere, a religião, com o seu papel aglutinador e estabilizador da estrutura social (no melhor e no pior sentido…), acaba sempre por desempenhar um papel relativamente determinante nestas questões da elitização do conhecimento (e da própria transmissão do conhecimento em si). Por um lado, se estimular (ou, pelo menos, não impedir) a inovação e a renovação do conhecimento, naturalmente que conduz a uma maior disponibilidade do conhecimento (com a eventual – e já abordada – particularidade de, mesmo assim, só alguns o poderem atingir), mas, por outro lado, se fizer a apologia da manutenção do conhecimento, da confirmação do anteriormente confirmado, enfim, da evolução da continuidade, será bastante expectável que, mais tarde ou mais cedo, o conhecimento acabe por ficar nas mãos de um grupo restrito de pessoas (para garantir que nenhuma – ou quase nenhuma – mente mais livre, menos disposta a manter a estabilidade, pega nesses conhecimentos e desata a desconstruí-los…), elitizando-se, portanto.

   Mas pronto, os leitores talvez já se estejam a perguntar, ou talvez já se tenham perguntado, “a que propósito é que vem esta porcaria toda?”. Pois bem, creio que não será preciso um grande esforço de raciocínio para nos fazer ver que o presente é consequência do passado, e, nesse sentido, de modo a melhor analisarmos (e, sim, pronto, criticarmos) esse presente, convém estarmos cientes do que foi esse passado.

   E, no caso particular do sistema de ensino português, e basicamente em toda a sociedade ocidentalizada, não podemos, de modo algum, ignorar aqueles que são as suas raízes, que residem precisamente nas tradições escolásticas medievais. E, como é sabido, estas tradições escolásticas inserem-se precisamente num contexto religioso que era profundamente conservativo (enfim, sem querer ofender ninguém… esta questão das religiões é sempre espinhosa, convém ter sempre muito cuidado e deixar sempre bem presente esta ressalva: a de que não pretendo, de modo algum, ofender, criticar ou desdourar a fé de ninguém…), gerando, por isto, este já tão repetidamente mencionado fenómeno da elitização do conhecimento. Eventualmente, esta tradição escolástica deu lugar à académica, com a fundação das primeiras universidades e tudo o mais, mas, durante um grande período de tempo (alvitraria eu que até ao século XVIII ou XIX, com o advento do iluminismo, do liberalismo ou de uma outra ideologia nessa veia mais aberta, mais transparente, mais progressiva), esteve sempre fortemente dependente de e fortemente condicionada por questões religiosas diversas, mantendo, portanto (e nem sei bem porque estou a repetir tanta vez esta mesma expressão…) o conhecimento elitizado. E, por mais que as alterações sociais (será sempre relativamente debatível se serão progressos ou não, pelo que não lhes atribuirei esse epíteto) possam ter intervindo entretanto no intuito de reverter essa elitização do conhecimento, nunca se deixou de verificar essa tendência, que, em última análise, se estende até aos dias de hoje.

   É claro que não é a religião a (única) culpada disto: como comecei por dizer, a elitização do conhecimento é consequência da própria natureza do ser humano e da sociedade; no entanto, e acho que também me estou a repetir aqui, não é por as suas origens serem perfeitamente compreensíveis que a elitização do conhecimento é desejável. O conhecimento é, em última análise, uma coisa imaterial, construída como que a partir do nada, e, nesse sentido, será muito pouco razoável reivindicar a posse ou o domínio desse mesmo conhecimento, até porque (questões experimentais diversas à parte…) acaba por não ser necessário despender recursos para o originar.

   Independentemente disto, ou melhor, paralelamente a isto, sou levado a admitir que tenho estado a ser dogmático ao afirmar pura e simplesmente que a elitização do conhecimento ainda se verifica na nossa sociedade, sem dizer como, onde e porquê. É claro que, no que toca ao ensino obrigatório (básico e secundário), só por má vontade se diria que elitizamos o conhecimento, já que até se obriga os alunos a adquirir esse conhecimento (quer o queiram, quer não…), e, de resto, sendo as coisas como estão e estando as coisas como estão, o autodidactismo está ao alcance de praticamente qualquer um. O problema está quando temos em conta questões científicas, ou, de outra forma, académicas, (vistas como) de maior profundidade; podemos admitir que é frequente a adopção de um vocabulário, de um discurso ou, genericamente, de uma forma de dizer as coisas que dificulta (quando não impossibilita mesmo) a total compreensão aos “não iniciados” no assunto em causa.

   É claro (acho eu… but one can never be too sure when it comes to human beings…) que isto não surge de um esforço consciente, voluntário, concertado, maquiavélico no sentido de minar a compreensão dos outros (aliás, diria mesmo que muitos tecnicismos e muitas questões formais aparentemente confusas até que têm uma razão muito lógica para existir… mesmo que pudessem ser, pelo menos nalguns casos, evitados…), mas temos de reconhecer que gera uma situação bastante análoga aos paradigmas de Kuhn: para se estar em condições de se adquirir os conhecimentos (eventualmente para os desconstruir e melhorar…), é quase que obrigatório passar-se por um processo de aprendizagem que, em grande medida, incute aos alunos a forma de ser e estar daqueles que, até então, eram os detentores desse conhecimento, o que conduz, em última análise, à estagnação dos conhecimentos (porque essa forma de ser e estar, na maioria dos casos, acaba por envolver a aceitação e defesa de conhecimentos que praticamente se passou a ter como absolutamente verdadeiros) e da sociedade (porque se continua a manter o grupo restrito de conhecedores, que conduz ao famigerado divide et impera que é tão responsável pela ausência de alterações…).

   Portanto, fazendo um ponto de situação: a elitização do conhecimento é má, e temos elitização do conhecimento. Logo, as coisas estão más, o que quer dizer que temos de as corrigir. Importará, então, saber como. A própria natureza dos conhecimentos que o ser humano tem vindo a adquirir, nas mais diversas áreas, e as limitações psico-fisiológicas de cada indivíduo ambas implicam que seja extremamente difícil atingir o conhecimento quase total no âmbito de uma dada área do conhecimento (pior ainda se for em várias…), e muito menos sem instrução prévia; nesse sentido, há sempre uma certa dose inevitável de elitização de conhecimento, que, sendo inevitável, não conseguiremos nunca eliminar. Mas há uma coisa ou outra que ainda podemos fazer: tentar diminuir (e eliminar) a questão das elitezinhas académicas, enfim, aquele síndroma do “ó’ p’ra nós que somos alunos universitários” (que passa também por aquela resposta estúpida e repetitiva do “não se queixem, que na universidade será pior” a tudo quanto seja contestação aos exames, não sei se sabem do que falo…). Por outras palavras, há que acabar com a abrupta clivagem entre aquele que é o mundo académico-científico, sempre intrinsecamente ligado ao ensino superior, e aquele outro que, por exclusão de partes, não posso dizer senão ligado ao ensino “inferior”. E como se faria isto? Com um progresso mais natural e contínuo do conhecimento, com as matérias separadas, etc. Já estão a ver onde quero chegar? Mini-Ciclos de Leccionamento!

   Não me interpretem mal em nada do que disse: tenho o máximo respeito pelo conhecimento, qualquer que ele seja (já que, e podem sempre aproveitar-se desta frase, o conhecimento é tudo e tudo é conhecimento), e não duvido do seu valor; semelhantemente, respeito e louvo inteiramente o a força de vontade e o espírito de sacrifício daqueles que se esforçam para o atingir; só não penso o mesmo dos seres humanos que fazem gosto em alardear que são seus detentores, ou das instituições que têm a pretensão de afirmam ter como missão, intuito e propósito transmiti-lo…

   Enfim, se isto foi ainda mais chato do que o costume, peço desculpa, mas apeteceu-me variar um pouco… Não sei, mas, pronto, se se sentirem metafisicamente inspirados a tal, podem sempre rebater todas as tretas coisas que eu para aqui disse, usando, com esse propósito, o espaço de comentários aí em baixo. Ou também podem não as rebater. É convosco.

   Eu, pela minha parte, pouco mais terei a acrescentar, (medianamente) concluído o raciocínio, (totalmente) concluída esta entrada… Direi, apenas, que vos dirijo os mais cordiais cumprimentos, e que é com essa mesma cordialidade que me despeço, até à próxima entrada…

Sem comentários:

Enviar um comentário

Este espaço está à disposição de todos os leitores, seja para elogiar, seja para criticar, seja para, pura e simplesmente, comentar. O autor reserva para si o direito de responder conforme tenha disponibilidade.