28 de setembro de 2015

Interpretando a Interpretação

   Após mais uma ausência (que não pode ser desculpada, apenas parcialmente justificada, por este início de ano lectivo), regresso, espero eu, verdadeiramente com uma ideia, e não com os meros fiapos de pensamento que tenho aqui despejado, ainda que a vacuidade de ideias que me afligia ainda se faça sentir. Sei que o tema que escolhi não é propriamente mediático, nem nada que se assemelhe a tal, mas, ainda assim, afigura-se-me como digno de aqui ser registado.

   Interpretação textual. Uma expressão que, por si só, necessita de ser interpretada. Será “interpretação” como a de um actor, exigindo, portanto, que se leia o texto, que se o compreenda e que se junte a nossa essência à dele, fazendo-o tornar-se parcialmente nosso, ter, por assim dizer, o nosso cunho pessoal, e depois mostrá-lo, nesse estado, aos outros? Será “interpretação” como a de um (passo a vaga redundância) intérprete, traduzindo as coisas do texto para nós, e de nós para os outros, estabelecendo-se ali uma certa conversação, de modo a que todas as partes se entendam? Será “interpretação” no sentido de explicação, esclarecimento, clarificação? Ou será nenhuma destas coisas?

   Independentemente de quantas tiradas poéticas deste género se poderiam fazer (e que de pouco ou nada servem no âmbito deste blog, por mais valor retórico que pudessem ter), atrever-me-ia a afirmar que nenhuma delas se adequa à realidade que todos os alunos podem experienciar: abundam os casos (sobretudo na interpretação em níveis mais… à falta de melhor expressão, “avançados” da linguagem) em que o que é pedido é, a bem dizer, um exercício de compreensão mística do significado metafísico das palavras escritas, e não propriamente uma interpretação. Aborda-se as coisas de tal forma que quase se pode dizer que, na perspectiva daquilo que seria a interpretação textual ideal, cada frase, cada palavra, aliás, cada letra escrita pelo autor tem uma segunda intenção.

   Mas isto, por si só, não seria um grande problema, até porque, de certa forma, acaba por ser essa a intenção da arte (ou talvez não… mas esta discussão não se adequa propriamente a este blog), não fosse o caso de se considerar que essa segunda intenção era uma e uma só, sendo inadmissível qualquer outra. A própria natureza dos textos de carácter literário implica que não haja verdadeiramente uma única interpretação possível. Claro, se se fala de um “cortinado azul”, seria manifestamente errado considerar-se que se trata de um “camião amarelo” (a não ser, claro, que se trate de uma situação em que a personagem troque os termos “cortinado” e “camião” e as cores “azul” e “amarelo”, ou qualquer outra coisa semelhante), mas não há uma única interpretação possível para o significado da cor do cortinado. Uns diriam que seria uma referência ao mar, outros à tristeza, outros à calma, outros à frieza, outros ao céu, outros…

   O problema surge, como já referi, e se os meus leitores me permitem a repetição, quando se considera que esse azul do cortinado é única e exclusivamente uma referência à roupa interior que o autor vê estendida na corda da roupa da casa em frente daquela onde escreveu o livro (se me permitem o exemplo vagamente surrealista), e se considera qualquer outra interpretação errada. Dificilmente poderia haver uma coisa mais redutora de qualquer tipo de raciocínio e potenciadora da memorização do que isto, e é escusado dizer, porque o costumo repetir de muitas e variadas formas, que a memorização não conduz ao verdadeiro conhecimento.

   Então, podemos considerar que tal atitude é indesejável. É certo que é importante conseguir entender a mensagem que outros escreveram e descodificar a informação nela contida, e que tais esforços podem contribuir para a compreensão global da linguagem, enriquecendo os conhecimentos no âmbito quer do vocabulário, quer da gramática, mas… enfim… isso não implica exactamente decorar-se uma interpretação que outrem fez. Aliás, fazê-lo até pode, a meu ver, desencorajar o desenvolvimento da língua, pois, em vez de se exigir que o aluno entenda o texto, o avalie por si próprio e depois exponha e defenda as suas perspectivas (o que implica sempre exercitar as suas capacidades linguísticas), está-se a pedir que o aluno decore e despeje o que se lhe apresenta. E isso, é escusado dizer, não é, de modo algum, positivo.

   Mas será que a interpretação constitui exactamente um conhecimento que se possa leccionar? Bem, num certo sentido, sim, há um conjunto de práticas comuns a toda a actividade interpretativa (se me permitem uma expressão com tão forte sonoridade burocrática…) que se podem ensinar, mas, por outro lado, tratando-se de algo que apela mais ao lado subjectivo e artístico, em última análise, não pode verdadeiramente ser leccionado. De certa forma, enquadra-se no mesmo grupo de actividades que a escrita propriamente dita, ou a pintura (com todo o respeito às restantes actividades não enunciadas): há técnicas e princípios teóricos que podem ser leccionados, mas não se pode ensinar a actividade em si, pois esta provém intrinsecamente do seu autor. Ainda que isto esteja já a enveredar demasiado pela Filosofia e pelos debates relativamente à essência da Arte, coisa que não é, como referi, a minha intenção…

   Assim sendo, sinto-me vagamente forçado a concluir que, no âmbito da minha ideia principal (se me permitem mencioná-la pela enésima vez neste meu blog), seria lícito desligar-se de uma maneira um pouco mais vincada a interpretação textual do conhecimento da Gramática, isto é, do funcionamento da língua em causa, bem como do seu vocabulário. Não obstante tudo o que já foi referido, torna-se bastante difícil interpretar um texto escrito numa linguagem da qual pouco ou nada conhecemos, pelo que, antes de se poder interpretar, é necessário que se conheça essa linguagem; assim, a interpretação textual apenas deveria poder ser frequentada após se ter adquirido os conhecimentos relativos à utilização, por assim dizer, da linguagem em causa.

   Mas, além disso, sou levado a pensar que exigir-se a interpretação de determinadas obras (por mais marcantes e significativas que possam ser) não constitui, em última análise, um verdadeiro conhecimento, da mesma forma que exigir que se saiba que 1727 + 6234 = 7961 não constitui um verdadeiro conhecimento: ambos os casos correspondem à aplicação de um raciocínio que, esse sim, é um conhecimento, e que permite obter muitas mais informações do que estes casos em particular. É certo que, no caso específico dos textos, há sempre umas certas especificidades inerentes à obra, ao autor e às condicionantes histórico-culturais que os afectam, ao contrário dos números, tendo um impacto significativo na sua interpretação. Isto implicaria, então, que, para se poder interpretar uma obra, se teria de obter primeiro os conhecimentos relativos a esse mesmo período histórico e/ou ao(s) movimento(s) artístico(s) em que essa mesma obra se integra, mas não obrigando, de qualquer das formas, a que se ministre essa interpretação em particular como conteúdo, em vez da interpretação em geral como raciocínio. Ou seja, eventualmente, e no âmbito da aprendizagem de um dado movimento artístico, poder-se-ia interpretar um ou mais textos desse mesmo movimento, mas nunca, nunca, nunca (abster-me-ei de acrescentar “e nunca”) obrigando a que se decore uma interpretação padronizada e oficialmente sancionada, que exclui todas as outras.

   Esta minha perspectiva poderia ter a aparente desvantagem de impedir que, na sua grande maioria, os alunos tivessem contacto com a literatura, mas, convenhamos, mesmo no sistema de ensino actual, não são assim tão poucos os que não lêem as obras exigidas, preferindo, em vez disso, ler apenas os resumos (por menos que consigam evitar ler excertos, seja em contexto de aula, seja em contexto de testes…), pelo que a literatura também não é assim tão promovida com a organização que temos agora. Mas também não deveria, da minha perspectiva (e conforme deixo implícito na minha Fundamentação Metafísica do Propósito da Escola), ser o sistema de ensino o responsável por divulgar propriamente a literatura e a cultura portuguesas; esses aspectos, que, sem sombra de dúvida, são relevantes na construção de cidadãos verdadeiramente esclarecidos e conhecedores, constituem mais um desenvolvimento pessoal (de uma componente predominantemente psicossocial) do que propriamente um desenvolvimento racional, não devendo, então, fazer parte do sistema de conhecimentos leccionados no ensino. Deverá ser o aluno, eventualmente estimulado pela família, ou por qualquer outra parte da sociedade, a dispor-se a ler, de sua livre (e mais ou menos espontânea) vontade, essas obras relevantes, lendo-as não como algo didáctico, mas sim como algo pura e simplesmente lúdico, ou seja, não como mais um pedaço de matéria, mas sim como mais um livro, como mais uma fonte de entretenimento. Admito que nem todas essas obras sejam assim tão fáceis de ler quanto isso, mas torná-las obrigatórias só contribui para dificultar ainda mais a sua leitura.

   Mas creio que já me dispersei de mais. Numa tentativa de não alongar ainda mais, creio que terminarei por aqui. Resta-me desejar uma boa semana a todos os leitores, e deixar a já habitual ressalva de que podem utilizar à vontade o espaço de comentários…

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