Peço desculpa aos meus leitores pela demora, mas fui acometido de um dos piores acessos de falta de inspiração que alguma vez experienciei. Todas as ideias me pareciam inconsequentes e insuficientes, todas as minhas palavras pareciam ocas e, por isso, não consegui propriamente encontrar nenhum bom tema para escrever, mas creio ser o meu dever fazer uma nova entrada. Por isso, e depois de muito esforço mental, decidi adoptar, à falta de melhor, este tema um pouco críptico, que não podia estar mais longe de mediático. Advirto já que a “fundamentação metafísica” se trata mais de uma expressão vagamente irónica do que propriamente de uma indicação do teor das reflexões filosóficas que se estabelecerão neste texto; não é este o lugar apropriado para reflexões dessa natureza.
Começarei por colocar uma pergunta retórica: para que serve a escola? Numa abordagem mais paranóica, poder-se-ia dizer que constitui um importante órgão de controlo e condicionamento da população, submetendo-a aos interesses da sociedade, mas esta perspectiva é demasiado exagerada (ainda que não esteja completamente errada…) para que se a possa sustentar com sucesso. Então, qual é mesmo o propósito de um sistema de ensino? Que falta é que faz? Que necessidade é que há de haver uma coisa assim?
Muitos diriam que o seu propósito seria contribuir para a completa formação do indivíduo, seja a nível intelectual, seja a nível social, seja a nível moral, mas sou forçado a discordar desta perspectiva principalmente por três motivos:
2) A possibilidade de haver um aproveitamento dessa faceta profundamente formativa do actual sistema de ensino para condicionar (ainda mais…) os indivíduos, conforme melhor possa aprouver aos lobbies e aos poderes instituídos, além, claro, de abrir um caminho bastante fácil para uma situação huxleyana de subjugação do indivíduo à mecanização da sociedade através do condicionamento providenciado pela educação.
3) A existência de uma pletora de competências (nos domínios sociais e morais, leia-se) que, pura e simplesmente, são quase impossíveis de ser ensinadas, tendo, em vez disso, de ser desenvolvidas pelo indivíduo.
Ora, tendo tudo isto em conta, não posso, de modo algum, partilhar das opiniões que recentemente se têm vindo a popularizar acerca de avaliações formativas, valorizações de competências sócio-afectivas e outras teorias afins (sem ofensa para aqueles que as apoiam, e sem ofensa também para as teorias em si). Antes que me acusem de desvalorizar essa componente através destas minhas palavras, permitam-me que refira que, sem sombra de dúvida ou de hesitação, admito que o indivíduo só está verdadeiramente completo se possuir (em maior ou menor escala) essas componentes. Apenas defendo que a transmissão dessas competências não deve ser um dos principais propósitos do sistema de ensino.
Então, qual será esse propósito? Permitam-me que responda laconicamente: transmitir conhecimento. Sim, claro, poder-se-ia argumentar que, em última análise, tudo é conhecimento, pelo que essas competências que refiro anteriormente também o são, e eu seria, inevitavelmente, forçado a concordar; no entanto, afigura-se-me que ainda há uma grande diferença entre saber somar e saber amar (no sentido mais poético do termo). Isto, claro, constitui um dos contrastes mais extremos, mas creio que é suficiente para ilustrar a questão: poder-se-ia dizer (se me permitem um dedinho de Filosofia) que, de uma maneira geral, há conhecimentos que surgem maioritariamente por uma via que podemos designar racional (sendo, por isso, de cariz mais exequível, além de mais facilmente transmissíveis, e possuindo maior objectividade e impessoalidade) e outros que provém de uma outra via mais psico-emocional e sensorial (embora tendo um impacto no dia-a-dia igual ou superior ao dos outros, acabam por possuir uma aplicabilidade mais pessoal e subjectiva, sendo, por isso, mais difíceis de transmitir).
Tendo isto em conta, poder-se-á, então, reformular a resposta que dei anteriormente: o sistema de ensino deve tentar transmitir única e exclusivamente os conhecimentos racionais, sejam os do âmbito mais prático (actividades laboratoriais, culinária, mecânica…), sejam os do âmbito mais teórico (Matemática, outras ciências, línguas…).
Mas não se pense, devido a estas palavras, que sobrevalorizo o racional e desvalorizo o psico-emocional; apenas considero que se deve separar bem as duas áreas, sem que estejam a cargo da mesma organização/entidade. Aliás, mesmo sem uma ênfase acrescida do actual sistema de ensino na área mais psico-emocional e sensorial, já considero que este se intromete demasiado nessas competências, ocupando, em consequência disso (e também das muitas outras falhas que se lhe podem apontar), demasiado tempo na vida dos alunos. Não, não faço nenhum apelo à borga ou à vida boémia que muitos adoptam nos seus tempos livres, apenas acho (e creio que, neste aspecto, já alguns psicólogos tentaram alertar para isto) que o sistema de ensino deveria providenciar mais oportunidades para que esse desenvolvimento de conhecimentos psico-emocionais e sensoriais pudesse ocorrer naturalmente, sem que houvesse trabalhos de grupo obrigatórios, sem que houvesse trabalhos de casa com o intuito de ensinar o que é um dever, sem coisas semelhantes que, muitas vezes, até têm efeitos adversos sobre as competências que visam desenvolver. Mas, da minha perspectiva, essas oportunidades não deveriam surgir no sistema de ensino em si, mas sim no tempo livre que este deixaria, mais do que o que deixa agora (e não falo de intervalos).
É claro que não se pode deixar o desenvolvimento dessas competências exclusivamente a cargo do indivíduo, mais a mais porque muitas delas surgem e se definem em função do outro, mas, por isso, e para isso, serviria a unidade familiar (quando possível) ou uma qualquer outra entidade especializada na transmissão desses conhecimentos, que, mesmo podendo ficar situada num espaço partilhado com o sistema de ensino dos conhecimentos racionais, diferiria deste não só pelo âmbito, mas também pela abordagem, mais vocacionada, como seria de esperar, para que seja o aluno, por si, a desenvolver essas competências. E, a meu ver, este tipo de conhecimentos nunca deveria, de modo algum, ser utilizado para propósitos avaliativos ou selectivos, não possuindo, por isso, nenhum tipo de obrigatoriedade (não mais do que a normal convivência em sociedade exige), pois, conforme refiro, estes conhecimentos não podem, ou não devem, ser forçados, antes surgindo naturalmente, ao ritmo de cada um (mas, claro, podendo ser alvo de estímulo por parte de outrem), mais a mais porque a sua não aquisição não constitui, na maioria dos casos, um obstáculo inultrapassável ao normal desempenho das tarefas (o caso mais flagrante será, creio eu, o das aptidões sociais: a timidez, embora, em muitos casos, seja bastante prejudicial, não constitui, de uma maneira geral, um problema fatal para o afligido…) e porque a subjectividade inerente a este tipo de conhecimentos implica exactamente que não podem ser subjugados a um critério externo, imparcial, avaliativo.
É, pois, aqui que divirjo grandemente das opiniões que acima referi: em vez de se englobar a transmissão dos conhecimentos psico-emocionais e sensoriais no sistema de ensino, como se tem feito, e se está a querer fazer ainda mais, face ao progressivo enfraquecimento do papel da família na formação do indivíduo (por motivos sócio-económicos diversos), proponho que, a estabelecer-se qualquer sistema de transmissão destes conhecimentos, este esteja desligado do sistema de transmissão dos conhecimentos racionais (que, de qualquer das formas, também não deve abarcar uma fatia tão alargada do dia-a-dia dos alunos e das famílias, cuja vida, de uma forma ou de outra, acaba por, hoje em dia, ser a modos que construída em torno dos condicionalismos que o sistema de ensino impõe) e, sobretudo, o mais independente possível dos interesses dos lobbies, sob pena de, se me permitem a metáfora, sermos nós próprios a entregar os fios que nos movem aos marionetistas.
Bom, creio que concluí esta relativamente longa dissertação relativa às funções do sistema de ensino. Temo ter sido demasiado críptico e confuso na minha abordagem, ter-me imiscuído demasiado nas águas turvas da Filosofia e da Psicologia, mas são os condicionalismos que a falta de temas me impõe. As minhas desculpas a todos e quaisquer leitores que possam ficar melindrados pelas minhas palavras, mas têm a minha garantia de que a minha intenção não era, de modo algum, ofender ou magoar, apenas expressar uma ideia. Tenho, igualmente, de apresentar as minhas desculpas por quaisquer eventuais falhas e incongruências que aqui se possam eventualmente encontrar. Resta-me relembrar o facto de o espaço de comentários ficar à vossa disposição, seja para corrigir, seja para criticar, seja para (se assim o entenderem) elogiar…